Por Jerônimo Rubim
A Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social – ATHIS é uma realidade com diversas possibilidades de aplicação – e deve ser realizada agora. Esse foi o norte capitaneado pelo curso de Capacitação em ATHIS realizado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Santa Catarina na cidade de Chapecó, dos dias 20 a 23 de agosto. Em quatro dias de imersão, arquitetos, assistentes sociais, advogados, acadêmicos e representantes do poder público puderam visualizar todo o alcance da Lei 11.888/2008, a Lei de ATHIS, que garante o direito a cidadãos de baixa renda os serviços gratuitos de arquitetos e urbanistas.
Com apoio da Unochapecó, que cedeu o espaço, e da Prefeitura de Chapecó, que disponibilizou seus técnicos para participar do curso e acompanhar o trabalho social, a capacitação em ATHIS é uma resposta aos anseios de arquitetos, agentes públicos e comunidades com os quais a Comissão Especial para ATHIS do CAU/SC conversou no último ano. A necessidade de aplicar a Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social na realidade das cidades brasileiras é evidente: mais de 85% dos brasileiros praticam a autoconstrução, sem qualquer orientação técnica, segundo um levantamento de 2015 do CAU/BR com a Datafolha¹. Mais do que isso, os problemas da construção sem o devido planejamento são visíveis nos bairros e nas áreas em que a exclusão e a falta de alternativas no mercado formal impedem a dignidade das moradias. O evento contou ainda com os apoios da FECAM – Federação Catarinense de Municípios e das entidades membros do CEAU/SC – IAB-SC, AsBEA-SC e SASC, que contribuíram na mobilização para a oficina.
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Um Acordo de Cooperação Técnica entre o CAU/SC e o município de Chapecó foi assinado na solenidade de abertura do curso, no dia 20, para a que o CAU/SC possa contribuir com a implementação da ATHIS na cidade, a partir das propostas do Plano Estratégico de Implementação de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (PEI-ATHIS), finalizado pelo Conselho em 2018. A partir de uma inovadora ação coletiva ajuizada pela Defensoria Pública, o município ficou obrigado a instalar um programa de ATHIS, e desde então, a lei 7.209/2018 foi criada para regulamentar aspectos da Lei Federal e um cronograma está sendo seguido para viabilizar a assistência pelo poder público.
“É importantíssima essa capacitação aqui na Unochapecó para instruir os profissionais e acadêmicos mas também a própria sociedade civil, que toma conhecimento da lei e da necessidade da concretização de sua concretização em Chapecó”, afirma o defensor público Renan Soares de Souza, que liderou a ação e esteve presente na abertura e durante alguns momentos do curso.
PIONEIRISMO
Esse é o primeiro curso de capacitação a ser realizado nesses moldes pelo CAU/SC, e a segunda edição será realizada em Florianópolis, de 17 a 20 de setembro (inscrições aqui). Apesar da lei de ATHIS já ser regulamentada em outros municípios de Santa Catarina, Chapecó é o primeiro a implantar a legislação com a extensão necessária para causar real impacto nas áreas de baixa renda.
Um projeto de regularização fundiária já está em curso na comunidade 25 de Julho, no bairro Efapi, como parte desse programa, e a promessa da prefeitura é que em pouco tempo a lei já esteja em plena aplicação. “Esse curso oferecido pelo CAU/SC é extremamente importante porque é através disso que conseguimos visualizar quais são os caminhos que devemos percorrer para poder implementar essa nova política”, afirmou durante o evento Cláudia Dilmann, consultora administrativa da prefeitura de Chapecó e coordenadora do projeto de ATHIS no município.
A presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Santa Catarina, Daniela Sarmento, explica que o plano tem início agora e mira largos horizontes: “Chapecó é a primeira cidade, mas a meta estipulada pelo Planejamento Estratégico em ATHIS do Conselho é transformar a realidade dos municípios catarinenses nos próximos seis anos. Com o apoio dos gestores públicos, das comunidades e dos arquitetos queremos diminuir a exclusão e oferecer o acesso à moradia digna e infraestrutura urbana à toda população”.
.:.Leia o PEI-ATHIS do CAU/SC.:.
Um dos eixos a guiar essa primeira experiência foi a comparação com o Sistema Único de Saúde – SUS, e de como o CAU pode assimilar e se aproximar da atuação desse sistema para conseguir maior alcance no exercício de assistência técnica. “A ATHIS é o SUS da arquitetura, estamos dizendo há algum tempo. É um exercício interdisciplinar. Assim como o direito à saúde, o direito à moradia é garantido pela Constituição Federal. No SUS temos médicos, enfermeiros, assistentes sociais garantindo a saúde da população, e a ATHIS segue a mesma lógica, como diversos profissionais agindo em conjunto, para garantir o direito à habitação, como parte do acesso ao direito à cidade”, Daniela.
O DESAFIO NA PRÁTICA
O curso de capacitação teve início no dia 20 de tarde, com uma introdução aos conceitos de política urbana, direito à moradia e à assistência técnica, legislação e um recorte regional de Chapecó.
O déficit habitacional da cidade é de 6.800 unidades, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado de Santa Catarina, e os números não param de crescer: um levantamento da Fundação Getúlio Vargas – FGV aponta que o déficit habitacional bateu recorde no Brasil atingiu 7,78 milhões de unidades habitacionais em 2017. Em Santa Catarina, 167.793 unidades habitacionais seriam necessárias para suprir esse déficit habitacional, segundo dados do Ministério das Cidades de 2013, já desatualizados. À época, o Estado possuía ainda 36.359 moradias classificadas em situação precária.
À noite, a arquiteta e urbanista e coordenadora do programa de assistência técnica da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal – CODHAB, Sandra Marinho, ministrou o seminário de abertura “A política Pública de Habitação” e falou sobre a exitosa experiência da entidade desde 2015. Baseando sua atuação em três eixos, regularização fundiária, requalificação urbana e melhorias das unidades habitacionais, o CODHAB desenvolveu um trabalho técnico social com postos para acolhimento para as demandas de assistência técnica nas comunidades de baixa renda do Distrito Federal. Esse modelo inovador se transformou em uma das principais referências em ATHIS do país, melhorando a vida de milhares de pessoas e atraindo profissionais e escritórios de arquitetura em parcerias.
.:. Leia mais sobre a gestão do CODHAB :.
“O principal desafio é que o município tenha uma equipe técnica multidisciplinar, capacitada com as ferramentas corretas para o atendimento de ATHIS, e ao mesmo tempo uma legislação própria que recepcione a Lei Federal”, diz Cláudia sobre a experiência. “O caso de Brasília mostra que o momento em que a gente tirou os projetos do papel e transformou em obras, atendeu não só as expectativas da população mas começou a ter mais sucesso no convencimento de que a política é necessária”, comenta Sandra Marinho, da CODHAB.
E foi no mesmo tom que a arquiteta Cláudia Pires, especialista em habitação social e responsável pela coordenação do curso pelo Instituto Educacional para a Conscientização e Realização de Políticas Públicas – ICPP, de Minas Gerais, continuou a formação. Um dos pontos mais exaltados por ela durante os quatro dias foi a diversidade de possibilidades de realização de ATHIS, citando suas próprias experiências em todo o território nacional e vários exemplos como o da COHDAB em Brasília, as assessorias técnicas de São Paulo, como o Usina e a Fábrica Urbana, entre outros. “É preciso se indignar com o fato de que milhões de pessoas estão sem condições mínimas de moradia nesse exato momento. Existem muitas maneiras de viabilizar, e há escritórios de arquitetura que vivem disso”, exemplificou.
Separado em sete módulos – Introdução, Trabalho Técnico Social e ATHIS, Visita Técnica Orientada, Regularização Fundiária e ATHIS, ATHIS: Como Fazer?, ATHIS e a Prática Profissional, Apresentação de Resultados – o curso de capacitação teve 40 participantes. Como se trata de um tema multidisciplinar, foi importante a contribuição do advogado especialista em direito urbanístico, Marcelo Leão, ao falar sobre REURB e ATHIS, e a questão legal da regularização fundiária e a interface entre as duas áreas.
Um dos pontos mais importantes foi a visita técnica à comunidade 25 de Julho, no bairro Efapi, onde já está sendo implantado um projeto de regularização fundiária pela prefeitura. Guiados por assistentes sociais e funcionários da prefeitura, acadêmicos e arquitetos puderam ver na prática a abordagem e a realização de um diagnóstico.
Respeitando e inspirando-se nas particularidades de cada residência e de sua comunidade, uma das premissas da ATHIS, os alunos do curso desenvolveram projetos de melhoria que foram apresentados no último dia. A experiência por si só foi enriquecedora, mas a possibilidade de melhorar a qualidade de vida dos moradores ultrapassou os muros da universidade e os grupos se motivaram a ir além: organizaram-se e estão motivados para transferir as ideias para a prática.
“Talvez pudéssemos fazer um levantamento em nível executivo, com orçamento, e apresentar para a prefeitura e fazer com que esse momento impulsione um primeiro modelo aplicado na cidade”, sugeriu, empolgado, o arquiteto Rafael Pedroso.
“Vemos nosso curso e também a Unochapecó muito engajados nessas questões sociais, e batalhamos muito para que nossos projetos sempre tenham um retorno para a comunidade e que se tornem realidade. Estamos muito emocionados em ver toda essa mobilização, e ver que as pessoas que fazem ATHIS realmente amam trabalhar com isso. Esperamos passar isso para os alunos e extrapolar a academia para mobilizar a sociedade como um todo”, se emocionou a professora Gabriela Borges, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unochapecó.
“Estou muito feliz com o que vi aqui no curso, as pessoas se mobilizaram, deram respostas positivas nas oficinas e no estudo de campo, entenderam que há uma carência no mercado relacionada a como atuar nessa área. Tentei passar meu conhecimento técnico para ajudar esses arquitetos a se engajarem e atuarem em seus escritórios, tendo na sua carteira de clientes o morador de menor renda, necessitado de uma política pública mas que também não pode prescindir do arquiteto e urbanista. Precisamos planejar o futuro da habitação de interesse social no Brasil, tendo por base que a arquitetura e urbanismo terá que dar sua contribuição social para a discussão desse processo”, finalizou Cláudia Pires, em um discurso emocionado
E assim, o Curso de Formação em ATHIS do CAU/SC lançou as sementes para o futuro.
DEMETRE ANASTASSAKIS
O Curso de Formação em ATHIS do CAU/SC teve a grande honra de contar com o planejamento e com boa parte do conteúdo produzido pelo arquiteto Demetre Anastassakis, que estaria em Chapecó junto com a equipe responsável mas faleceu no dia 27 de julho. Um apaixonado defensor da arquitetura de interesse social, foi presidente do IAB nacional e realizou inúmeros projetos em todo o território nacional, em um legado que inclui o Conjunto São Francisco, em São Paulo, o projeto Novos Alagados, em Salvador, o Moradas da Saúde e a reurbanização do Conjunto da Maré, no Rio de Janeiro, como parte do programa Favela-Bairro, do qual foi um dos idealizadores. Demetre foi um dos redatores da lei 11.888/08, redigida em conjunto com o então presidente da FNA, arquiteto Ângelo Arruda e o deputado federal Zezéu Ribeiro. O conteúdo desenvolvido para o curso de ATHIS do CAU/SC acabou por se tornar uma das últimas obras do Demetre.
Coube à sua companheira de vida nos últimos 15 anos, Cláudia Pires, dar continuidade ao curso, e o CAU/SC agradece imensamente por sua coragem e generosidade.
¹ Pesquisa Datafolha – CAU/BR: https://www.caubr.gov.br/pesquisa2015/